Na vastidão da pampa úmida argentina, onde o horizonte se mistura com o céu e o vento carrega o cheiro de pasto fresco, nasceu uma das tradições mais emblemáticas da América do Sul: o asado. Mais do que um simples churrasco, o asado é parte do espírito dos gaúchos argentinos, os vaqueiros da região do sul, cujos modos de vida moldaram a cultura, a paisagem e, mais recentemente, um novo paradigma alimentar.
O que talvez poucos saibam é que, enquanto o mundo busca soluções sustentáveis para a crise climática, os gaúchos argentinos já praticam, há séculos, um modelo de pecuária que hoje chamamos de regenerativo. Sim, a tradição pode ser visionária — e nesse caso, é.
Este artigo mergulha fundo na história, nas práticas e nos aprendizados dos gaúchos da Argentina, revelando como transformaram o churrasco — símbolo de celebração e identidade — em um pilar de regeneração ecológica e cultural. Vamos explorar o que é a pecuária regenerativa na prática argentina, como ela está integrada ao dia a dia dos produtores e quais passos podemos seguir para aprender com esse modelo ancestral e ao mesmo tempo inovador.
A alma da pampa: quem são os gaúchos argentinos?
Os gaúchos surgiram no século XVIII, em regiões hoje pertencentes à Argentina, Uruguai e sul do Brasil. São descendentes de indígenas, colonizadores espanhóis e africanos que desenvolveram um modo de vida nômade, ligado à criação de gado em campos abertos.
Viviam da terra, respeitavam os ciclos da natureza e viam o animal como parte de um ecossistema. Vestiam bombachas, comiam carne assada na brasa, bebiam mate e passavam mais tempo a cavalo do que em casa.
Com o tempo, o gaúcho foi se fixando em estâncias e transformando a lida com o gado em arte — uma arte que nunca se distanciou da terra.
Uma tradição que nasce do solo saudável
O segredo das pastagens naturais
As regiões de Corrientes, Entre Ríos, Santa Fé e La Pampa oferecem condições únicas para a pecuária regenerativa. A combinação de clima temperado, alta pluviosidade e vastos campos nativos fez com que o modelo extensivo, com rotação natural de pastos e respeito ao tempo da terra, se mantivesse viável por gerações.
Diferente da pecuária industrial, que depende de confinamento, grãos, antibióticos e fertilizantes químicos, os gaúchos desenvolveram um sistema baseado em pasto nativo, manejo de baixa densidade e mínima intervenção humana.
A natureza faz o trabalho pesado. O papel do homem é observar, aprender e agir com sabedoria.
Essa abordagem favorece:
- Sequestro de carbono no solo
- Ciclagem de nutrientes de forma orgânica
- Aumento da biodiversidade local
- Bem-estar animal superior
Ou seja, é regeneração na essência — mesmo que o termo só tenha ganhado nome e fama décadas depois.
O asado como expressão do ecossistema
Do campo à grelha: o ciclo completo
O asado gaúcho argentino é feito lentamente, com cortes grandes (como costela, matambre e vacío), preparados na parrilla ou cruz, e sempre com lenha ou carvão natural. O ritual é coletivo, muitas vezes realizado aos domingos, com famílias inteiras reunidas ao redor do fogo.
Essa tradição vai além do prato. Ela celebra a conexão entre:
- Quem cria e quem consome
- A terra e o alimento
- O tempo e a paciência
O gado alimentado a pasto gera uma carne mais firme, com sabor pronunciado, rica em ômega-3, vitaminas lipossolúveis e antioxidantes. A grelha preserva essa qualidade — e o momento compartilhado torna o churrasco uma experiência sensorial e cultural única.
A pecuária regenerativa moderna na Argentina
Muito além da tradição
Embora a cultura gaúcha mantenha práticas sustentáveis de forma natural, nos últimos 20 anos surgiram movimentos organizados que integram ciência, tecnologia e mercado à sabedoria ancestral.
Entre os principais destaques:
- O Grupo Pampa Orgánica Norte: rede de pecuaristas certificados que promovem produção orgânica regenerativa e exportam para a Europa.
- A empresa Guasunchos: estância regenerativa que usa drones, sensoriamento remoto e pastoreio rotativo com meta de sequestro de carbono.
- A ONG Ovis 21: parceira do Savory Institute, promove treinamentos em pastoreio holístico e criou o selo de certificação Land to Market na Argentina.
- Fundación Producir Conservando: articula políticas públicas e práticas privadas para garantir uso regenerativo das pastagens.
A junção entre tecnologia de ponta e sabedoria de campo vem fortalecendo o país como um modelo de sucesso.
Comparando com o Brasil: o que podemos aprender?
Três lições dos nossos vizinhos
Embora o Brasil também tenha gaúchos e regiões com vocação para a pecuária regenerativa, a Argentina está à frente em alguns aspectos.
1. Valorização cultural da pecuária a pasto
Na Argentina, o gado confinado ainda é minoria. A carne de pasto é o padrão, não o nicho. A identidade nacional está atrelada à criação em campo aberto, o que facilita o desenvolvimento de cadeias regenerativas.
→ Lição para o Brasil: reconstruir a narrativa do produtor como guardião da terra, não apenas fornecedor de proteína.
2. Organização de redes regenerativas com foco em exportação
Grupos como o Pampa Orgánica estruturaram cadeias produtivas que mantêm a rastreabilidade do campo até o cliente europeu. Isso abre portas e valoriza o produto.
→ Lição para o Brasil: investir em rastreabilidade digital, certificações e marketing internacional.
3. Integração com ciência e certificação internacional
A parceria com o Savory Institute e centros de pesquisa garante que práticas regenerativas sejam mensuráveis, auditáveis e adaptáveis ao clima local.
→ Lição para o Brasil: expandir os centros de excelência, capacitar técnicos e envolver universidades.
Passo a passo: como adaptar o modelo gaúcho argentino para a realidade brasileira?
1. Identifique a vocação natural da sua região
Cada bioma tem uma capacidade regenerativa diferente. Conheça o tipo de solo, a cobertura vegetal nativa e os ciclos de chuva para definir o modelo ideal.
2. Aplique pastoreio rotativo adaptativo
Essa é a base da regeneração. Controle a densidade animal, respeite o tempo de repouso do pasto e evite degradação por superpastejo.
3. Elimine insumos químicos e foque na biologia do solo
Compostagem, cobertura morta e diversidade vegetal alimentam os micro-organismos do solo, que são a base da produtividade e do equilíbrio ecológico.
4. Valorize as tradições locais
Transforme o churrasco em ferramenta de educação ambiental. Celebre os saberes do campo. Use o fogo como símbolo de regeneração, não de destruição.
5. Conecte-se a redes regenerativas
Busque parcerias com cooperativas, ONGs, startups e certificadoras que atuam com regeneração. Sozinho, o caminho é mais difícil.
Muito além da carne: regenerar também é regenerar cultura
A regeneração não se limita ao solo. Ela inclui comunidades, narrativas, rituais e relações. O que os gaúchos argentinos fizeram — e seguem fazendo — é manter viva uma tradição que cuida da terra enquanto alimenta a alma.
Eles provam que a regeneração não é um modismo, mas um retorno inteligente às raízes. E que é possível ter qualidade, sabor e sustentabilidade no mesmo prato.
O Brasil, com sua diversidade cultural e riqueza agroambiental, tem tudo para criar seus próprios caminhos regenerativos. E o churrasco — nossa paixão nacional — pode ser o estandarte dessa transformação.
Ao resgatar saberes antigos e adaptá-los com ciência e responsabilidade, os gaúchos argentinos mostram que tradição e inovação não são opostas. São complementares. Eles transformaram o asado em um ato de amor à terra — e nos convidam a fazer o mesmo.
Na próxima vez que o fogo crepitar e a carne chiar sobre a grelha, que cada pedaço seja também uma semente de futuro plantada com respeito, equilíbrio e consciência. Porque comer bem é, também, cuidar do que nos alimenta.